quarta-feira, novembro 14, 2007

O Último Dia

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A chuva caía intensamente do lado de fora. A pequena janela de vidro era forçada de tempos em tempos contra o aro de madeira, provocando um barulho irritante. E foi justamente esse som incômodo que tirou o homem do transe.

Ergueu os olhos e encontrou a janela entreaberta. Refletiu por alguns segundos. Tomou coragem e levantou da cama. Assim que passou o trinco na baderneira, sentou-se novamente na cama desarrumada.

Alguns segundos se passaram até que resolveu se situar no tempo. Olhou para a sombra na parede. Já eram quase 5 horas da manhã; logo amanheceria. “Afinal de que me adianta comemorar o nascimento de um novo dia? – pensou balançando a cabeça”. Levantou e foi até o canto oposto do quarto.

Uniu as mãos em forma de concha, juntando as palmas com firmeza. Mergulhou-as na bacia de água que jazia sobre um pequeno banco de carvalho. Enquanto olhava a água agitada deformando seu rosto pensou: “Meu último dia de vida e eu tomando banho nessa porcaria”. Jogou o liquido no rosto.

A chuva cessou. Os primeiros raios solares invadiram o pequeno quarto revelando as paredes castigadas pela umidade. Manchas escuras se espalhavam por todo canto. Rachaduras que saiam do chão e se perdiam no teto completavam o cenário decadente. E ali, no meio de tudo, estava ele, sentado com as mãos no rosto. “O que é que eu fiz para merecer isso? – pensou com tristeza”.

Do lado de fora já era possível ouvir a chegada dos operários. Com certeza vinham aprontar o palco para a festa mórbida de sua despedida. E o pior, centenas de pessoas estariam presentes, rindo, torcendo pelo espetáculo. “Como existe gente sem coração nesse mundo – pensou chacoalhando a cabeça”.

Batem na porta.

- Garcia, tá acordado? – perguntou a voz abafada.
- Sim – respondeu o rapaz de mau humor.
- Quer comer alguma coisa especial hoje? Sabe que você tem direito à refeição que escolher.

A sua última refeição naquele lugar. O que pedir? Sopa? Carnes? Massa? Não conseguia pensar em comida. E para piorar, o barulho de martelos, serras e operários conversando não o deixava pensar. Eles conversavam animadamente sobre a esposa de um deles. “Ela não me dá sossego – reclamava – Todo dia é a mesma coisa. Arruma a sua sujeira, – imitava-a com uma voz estridente - tira os pés da mesa, escova os dentes. Não agüento mais”.

Sentiu pena do homem. Balançou a cabeça. Lembrou-se do que fazia ali hoje. Suspirou com tristeza.

As imagens de sua vida passavam a sua frente com velocidade e realismo impressionantes. O primeiro dia em que foi ajudar o pai no campo. A primeira briga com o gordo do Pedrão atrás do armazém do seu Chico. O primeiro beijo que contou aos amigos. O primeiro beijo de verdade. As bebedeiras com os primos. E para que lembrar de tudo aquilo? Estava condenado.

Bateram na porta novamente. Era o segundo e último aviso. Estava sendo vigiado. Não havia como escapar. Começou a vestir os trajes que estavam em cima da cadeira. Não se apressou. Cada meia foi colocada em aproximadamente 40 minutos.

Não sabia quanto tempo havia passado. O sol àquela altura já brilhava com força e seus raios quentes invadiam o pequeno cômodo. Os operários haviam terminado. As pessoas já se amontoavam do lado de fora da janela. Podia ouvir o rebuliço.

Dois homens entraram no quarto apressados.

- Vamos logo Garcia, – disse o primeiro – chegou a hora.
- Não torne isso mais difícil para nós – completou o outro.

Ele se levantou e caminhou entre os dois homens para fora do recinto. Uma porta de abriu na sua frente. Depois outra. Um corredor. Outra porta. Luz. Muita luz.

O povo gritou alto quando o portão se abriu. Lá estava ele, escoltado por dois homens. Seu abatimento era visível.

A caminhada pelo corredor improvisado foi longa. De ambos os lados, o homem era afrontado por uma gritaria ensurdecedora.

Subiu as escadas. Degrau a degrau. O suor escorria pela sua testa. Lá estava o carrasco, sóbrio, sem emoção. Pensou em um plano de fuga. Poderia correr, se misturar ao povo. Uma mão firme agarrou seu braço. Era tarde. Virou-se para o carrasco. O povo silenciou.

Com serenidade o homem todo de preto à sua frente olhou em seus olhos, depois olhou para a mulher ao seu lado e disse:

- Estamos reunidos aqui hoje, para unir essas duas almas, no santo matrimônio.

Suspirou.

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